1.
Introdução
As relações domésticas (ou
do lar) podem passar por fases turbulentas e de desarmonia, como ocorre em
qualquer família. Ocorre que, por vezes, pode ser que um integrante da família
ultrapasse os limites morais e legais, chegando a ferir a dignidade de outrem,
seja do cônjuge/parceiro, dos filho, dos pais, etc.
Diante milhões de
ocorrências pelo país (apenas uma parte registrada oficialmente), sendo grande
parte contra a mulher (gênero/ sexo) simplesmente por ela “ser mulher” o Poder
Legislativo criou a Lei nº 11.340 de 2006, popularmente conhecida como Lei
Maria da Penha, a qual tem como objetivo crias “mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher” .
Após estudos, concluiu-se
que essa grande parte de ocorrências de violência contra mulher aconteceram
pelo simples fato dela ter nascido mulher, pois, no pensamento de algumas
pessoas (inclusive outras mulheres, por sinal), elas são mais fracas,
vulneráveis e até inferiores. Assim, a criação desta lei se fez necessária para
endurecer punições e criar, dentre outras coisas, medidas de proteção à mulher.
A seguir veremos, de forma
objetiva e simplificada, o que esta lei prevê sobre as formas de violência e
como usa-la para se proteger do agressor.
2.
Violência doméstica e a Lei Maria da Penha
Conforme o artigo 5o da lei
em estudo, a violência doméstica/familiar consiste em “qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial”. Ou seja, uma conduta, dolosa ou
culposa, de qualquer pessoa que agrida o direito à vida, à integridade e
dignidade física, sexual, psicológica, moral e patrimonial de mulher por ela
ser mulher, nada mais.
O dispositivo, além de
definir legalmente o que é violência doméstica, traz em seu corpo as formas,
quais sejam: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial, as quais
estudaremos logo mais.
Com essa definição, é
possível para o operador do direito (advogado, delegado, promotor, juiz,...)
enquadrar (“encaixar”) o fato ocorrido à lei para então utilizar ou não os
dispositivos da Lei Maria da Penha, a qual trouxe mais conceitos:
I- Unidade doméstica como sendo “o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar,
inclusive as esporadicamente agregadas”. Ou seja, não há necessidade de vinculo
familiar (de sangue ou afeto), mas tão somente que haja convivência entre as
pessoas, como nos exemplos de: um empregado doméstico (faxineiro, jardineiro,
enfermeiro,...); um amigo que está desabrigado e já convive no lar à 2 meses;
ou um estudante de intercâmbio recebido.
II- Família como “comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa”. Aqui, temos o conceito clássico de família, sendo pessoas ligadas
por laço sanguíneo, como pais e filhos, tios e sobrinhos,... e laço afetivo,
como adotados e pessoas sob sua guarda, tutela ou curatela.
III- Qualquer relação íntima de afeto, sendo aquelas em que “o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.
Neste inciso temos as relações amorosas, desde o casamento até namoro, sendo
necessário um convívio por espaço de tempo, seja na mesma residência ou não,
como no caso de pessoas que casam mas continuam no lar dos pais ou próprio ou
no caso de pessoas que namoram aos finais de semana.
Por fim, este artigo traz em
seu parágrafo único uma previsão moderna e necessária para a sociedade
atual: “as relações pessoais enunciadas
neste artigo independem de orientação sexual”. Ou seja, não interessa se as
relações domésticas, familiares ou íntimas de afeto são entre homem e mulher ou
entre duas mulheres, a Lei Maria da Penha pode ser aplicada.
Ainda, a lei trouxe
alterações para nosso Código Penal, endurecendo a pena dos agressores a
mulheres pelo seu gênero/sexo.
O artigo 43 da Lei Maria da
Penha incluiu a alínea “f” ao inciso II
do artigo 61 do Código Penal, o qual prevê como agravante para aumento da
pena o crime praticado “com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica”.
Ainda, o artigo 44 da lei em estudo
incluiu o §9º ao artigo 129 do diploma penal, criando a Lesão corporal
qualificada “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão,
cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”, com pena de detenção, de
3 meses a 3 anos.
Assim, a Lei Maria da Penha
revolucionou a proteção à mulher quanto à suas fraquezas perante outros que
acreditam que ela seja inferior ou mais fraca. Pode parecer que tudo isso não
passa de simples conceitos, mas na técnica forense os conceitos são de extrema
utilidade para poder aplicar a lei, com direitos e obrigações, a cada caso
concreto.
3.
Formas
Como dito anteriormente,
tanto para fins práticos quanto legais, até interdisciplinarmente, as formas de
violência foram divididas, conforme estudaremos os incisos do artigo 7 da Lei
nº 11.340/06.
3.1.
Física
O inciso I prevê que a
violência física é entendida como “qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal”. Ou seja, compreende as agressões físicas, a violência
contra o corpo ou saúde.
Caso típico de violência
física é o crime de Lesão corporal (art. 129 do Código Penal), onde um
indivíduo desfere socos, chutes, pauladas, ou ainda puxa cabelo, arremessa ao
chão,... Em alguns casos, a violência física, ainda, pode ser decorrente de Homicídio
(art. 121 do Código Penal) tentado ou até consumado.
Importante demonstrar que
tal agressão pode ser constatada e provada através de fotos, vídeos e
testemunhas. Porém, por estarmos diante crimes materiais, é necessário o Exame
de corpo de delito no IML (Instituto Médico Legal) ou, no mínimo, laudo médico de
atendimento do hospital ou pronto-socorro.
3.2.
Psicológica
Já o inciso II traz a
violência psicológica como “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.
Aqui, o agressor busca
atacar a saúde mental, o psicológico da vítima, com o fim de causar emoções
negativas ou destruição do auto respeito e do auto amor. É comum, nesses casos,
o agressor cometer crimes de Injúria (art. 140 do Código Penal), de Ameaça
(art. 147 do Código Penal) e de Constrangimento ilegal (art. 146 do Código
Penal). Importante: a Injúria só pode ser processada pela via particular, por Advogado;
a Ameaça exige a Representação
(termo para expressar vontade de ver o agressor punido) pela vítima, sendo
necessário falar a palavra REPRESENTAR
contra o autor no prazo de 6 meses dos fatos; o Constrangimento ilegal é de
ação penal pública, ou seja, basta o Ministério Público tomar conhecimento e
ter as provas.
Os meios de prova mais
comuns são fotos, vídeos, mensagens de celular (SMS, e-mail, redes sociais,
messengers,...) e testemunhas.
3.3.
Sexual
No inciso III temos a
violência sexual “como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter
ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer
modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou
que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante
coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício
de seus direitos sexuais e reprodutivos”.
Observamos que é uma modalidade
mais ampla, que envolve não só a dignidade e liberdade sexual da mulher, mas
também a liberdade em conceber um filho ou em casar. Os crimes aqui envolvidos
vão desde o Estupro (art. 213 do Código Penal), pois o casamento ou
relacionamento íntimo não exclui o consentimento em ter relação sexual, até o Constrangimento
ilegal.
Aqui, as provas se repetem,
porém, se houve ato sexual, é necessário novamente o Exame de corpo de delito
no IML.
3.4.
Patrimonial
Quanto ao inciso IV, a
violência patrimonial é entendida como “qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”.
Nesse caso, é comum o
agressor apoderar-se de bens, incluindo dinheiro, da mulher para que ela não
tenha sua independência financeira para ir e vir ou adquirir o que quiser,
mantendo a dependência com o agressor. Comum, assim, o Furto (art. 155 do
Código Penal) ou Roubo (art. 157 do Código Penal).
Além dos meios de prova já
mencionado, cabe também o extrato bancário.
3.5.
Moral
Por fim, o inciso V diz que
a violência moral é “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou
injúria”.
Ou seja, são os crimes
contra a honra, seja subjetiva (interna da vítima; imagem dela consigo mesma),
seja objetiva (externa a vítima; imagem dela perante a sociedade). Calúnia
(art. 138 do Código Penal) é a imputação de fato que é crime, atingindo a honra
objetiva e subjetiva. Difamação (art. 139 do Código Penal) é imputar fato
ofensivo à reputação, atingindo a honra objetiva. Injúria (art. 140 do Código
Penal) é a ofensa direta, geralmente xingamento, atingindo a honra subjetiva.
Para o agressor ser processado,
deve-se ingressar com ação penal privada com Advogado.
Os meios de prova vão desde
o testemunhal até documentais como SMS, e-mail, redes sociais, messengers,...
4.
Medidas Protetivas
As medidas protetivas, como
diz o nome, são imposições para resguardar os direitos da vítima. Elas se
dividem em medidas de obrigação ao agressor e em medidas para a vítima.
As Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor estão no
artigo 22 da Lei Maria da Penha e podem ser aplicadas pelo juiz de imediato caso
constatada a violência. As medidas são:
I- suspensão da posse ou
restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente;
II- afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III- proibição de
determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação
da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de
distância entre estes e o agressor; b) contato
com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares
a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV- restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a
equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
No § 2o, prevê a
possibilidade de restrição do porte de armas do agressor, caso ele tenha o
porte ou até trabalhe armado. Para efetivar as medidas, o juiz pode contar, a
qualquer momento, com auxílio policial, conforme o § 3º.
As Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida estão no artigo 23 e
permitem o juiz, quando necessário:
I- encaminhar a ofendida e
seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de
atendimento;
II- determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao
respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III- determinar o afastamento da ofendida do lar, sem
prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação
de corpos.
Ainda, a lei prevê no artigo
24 medidas para proteção dos bens ligados ao casamento e dos particulares da
mulher, sendo que o juiz poderá determinar liminarmente:
I- restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à
ofendida;
II- proibição temporária para a celebração de atos e contratos de
compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização
judicial;
III- suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV- prestação de caução
provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais
decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Todas essas medidas são
possíveis de ser requeridas inicialmente na delegacia e posteriormente ao
Ministério Público ou por Advogado para o Juiz então decidir por conceder ou
não, após análise da existência de violência doméstica/familiar nos termos
desta lei.
5.
Prevenção e a eficácia das medidas
Agora que sabemos no que
consiste violência doméstica/familiar, quais as formas e quais as medidas
protetivas existentes, veremos como tornar efetiva a proteção à mulher.
Primeiramente, vale
ressaltar que, apesar da grande evolução dos direitos e igualdade das mulheres
nas últimas gerações, devido até a criação das pessoas e valores sociais,
muitas mulheres ainda carregam a cultura de inferioridade, como se tivessem de
servir ao homem ou descendente ou ascendente. Por exemplo, não é incomum vermos
mulheres: submissas a seus maridos/companheiros; submissas a filhos (as);
submissas a pais ou mães.
Em segundo lugar, temos de
perder a visão de que o agressor e opressor é somente o homem, uma vez que
existem mulheres que acreditam que suas iguais são fracas e devem ser submissas
aos mais fortes, podendo ela ser autora de um crime ou partícipe. Já presenciei
diversos casos na prática forense de mãe submetendo filha ou filha submetendo
mãe a situações indignas.
Tendo isso em vista, vamos
aos órgãos públicos que podem auxiliar a vítima em caso de violência
doméstica/familiar:
I-
Polícia Militar: é dever da polícia militar ser ostensiva
(mostrar para a população que a polícia existe e atua) e ser preventiva (evitar
crimes). Assim, enquanto houver a agressão, a Polícia Militar pode ser acionada
pelo 190 para intervir e prender o criminoso. É papel dela, também, conduzir as
partes à Delegacia para providências. Por fim, pode escoltar a vítima para o
lar, além de impor o afastamento do agressor do lar, quando houver determinação
do Juiz;
II-
Delegacia de Polícia: em especial na Delegacia de Proteção à
Mulher, é aqui que a Polícia Civil,
através de seus investigadores, escrivães e delegados, apura os crimes. Aqui,
registra-se a ocorrência e, nos casos de crimes que exigem representação (como
a Ameaça), REPRESENTA contra o autor para que ele seja processado e, também,
pede as medidas protetivas. O delegado de polícia, em seguida, encaminha os
autos para o fórum.
III-
Ministério Público: é o órgão que tutela os direitos da
coletividade. Ao receber os autos da delegacia, o Promotor de Justiça analisa o
caso e, com o mínimo de provas da violência, pede a aplicação das medidas ao
juiz. Em seguida, pede a coleta das provas suficientes para comprovar a autoria
e a materialidade do delito para então processar o agressor nos crimes que não
sejam de ação penal privada (como na Injúria, Calúnia e Difamação);
IV-
Judiciário: após o requerimento do Promotor de Justiça
pelo deferimento das medidas protetivas, o Juiz decide se há fundamento para a
aplicação delas e quais aplicar. Dependendo das medidas, como afastamento do
agressor do lar, o Juiz pode ordenar a polícia, seja Militar ou Civil, efetivar
o cumprimento. Ainda, as medidas protetivas são ordens judiciais, sendo que se
o agressor as desrespeitar, incorre em crime de Desobediência (art. 330 do
Código Penal).
Por fim, não é órgão da
Administração Pública mas exerce “ministério privado de função social”, temos o
Advogado, o qual tem capacidade postulatória para fazer pedidos em nome da
vítima diretamente ao Juiz ou acompanhar a vítima na Delegacia para que seus
direitos sejam tomados a termo.
Assim, para a efetividade
das medias a vítimas pode contar com as pessoas e órgãos acima expostos.
Como é comum a vítima
procurar a Delegacia de Polícia sozinha e sem prévia orientação, deixo em
destaque dois pontos para quem fizer isso: use expressamente o termo “REPRESENTO CONTRA O AUTOR PARA QUE ELE
SEJA PROCESSADO”; use expressamente o termo “DESEJO A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI MARIA DA PENHA”;
certifique-se que o policial registrou esses termos no Boletim de Ocorrência e em seu depoimento.
Assim, as chances de
deferimento das medidas são muito maiores.
Por fim, caso esteja
protegida pelas medidas e o agressor tente contra elas, a mulher deve procurar
um Advogado ou o Ministério Público para comunicar sobre o ocorrido, podendo o
agressor ser preso por Desobediência ou, ainda, em prisão preventiva por acusar
risco à ordem pública (art. 312 c.c. art. 313, III, ambos do Código de Processo
Penal).
7.
Conclusão
Nos dias de hoje, há
pessoal, estrutura e lei suficiente (não ideal) para a proteção à mulher contra
a violência de gênero, podendo ela requerer medidas protetivas ao Judiciária
através da atuação de Polícia, Ministério Público e Advogado.
Para maior conhecimento,
indico a cartilha “Mulher... vire a página”, do Grupo de Atuação Especial de
Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID), do Ministério Público do Estado de
São Paulo, que ilustra as formas de violência e traz todas as opções
interdisciplinares (criminal, social, assistencial,...) para apoio à mulher:
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilhas/vire_a_pagina.pdf (versão em
espanhol: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilhas/vuelta_la_pagina.pdf).
A mulher deve pensar nas
pessoas que ama, incluindo a si mesma, pois a violência doméstica/familiar não
atinge somente a ela, mas a toda coletividade.
Vladimir Vitti Júnior
Advogado
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